No ano litúrgico, são raras as ocasiões em que se escutam os textos dos evangelhos que falam dos “irmãos” de Jesus. E quando se propõe dar alguma explicação do seu significado, esta consiste, quase sempre, em atribuir à palavra irmãos o equivalente a primos. Portanto, irmãos de Jesus significaria primos de Jesus. No entanto, o termo grego para irmãos – adelfos – sempre significou irmãos e não primos. Daí que já uma antiga tradição, quase na origem da Igreja, atribua filhos a José, de um casamento anterior, de que terá ficado viúvo. Porém, São Jerónimo era contrário a esta tradição, porque acreditava que José tinha sido um esposo sempre virgem. Muito mais tarde, os protestantes vieram afirmar que Jesus, depois do seu nascimento, teria tido mesmos irmãos, sendo filhos tanto de José como de Maria. Mais recentemente, também alguns biblistas católicos aderiram a esta posição, talvez numa tentativa de querer “normalizar” a relação entre Maria e José, desejando que fosse mais próxima de todas as famílias. Compreende-se, então, que diante de posições deste género – sobretudo para quem é tradicionalmente católico e acredita na virgindade perpétua de Maria e também na de José (como entendia São Jerónimo) – a desorientação possa ser grande. Mas como o termo irmãos – adelfos – significa mesmo irmãos, como poderemos assim justificar estes outros “filhos” dentro Família de Nazaré? Será que haverá alguma outra explicação que nos possa fazer entender mais adequadamente a questão dos irmãos de Jesus? A sua resolução definitiva – sublinho que este é um meu ponto de vista – talvez a possamos encontrar se trouxermos para debate um aspeto que faz parte integrante de todo o projeto que visa constituir uma família. Afinal, os noivos, ao se prometerem em casamento, não são movidos sempre, na origem, por uma mesma intenção comum? E no caso particular de Maria e José, qual poderia ser a sua “intenção comum”?
A “vocação” de Maria e de José
Segundo a tradição da Igreja, Maria foi considerada sempre virgem, antes e depois de Jesus nascer. Como católicos, é assim que acreditamos e a proclamamos. Este é também o sentido das palavras de Maria quando pergunta ao Anjo Gabriel: como vai ser isto, se eu não conheço homem? (Cf. Lc 1,34). A afirmação, eu não conheço, em grego – como demonstram os estudos bíblicos – explicitam uma vontade e decisão de viver num estado de virgindade permanente e não apenas transitório. Portanto, Maria, de alguma maneira, teria já feito um “voto” de castidade ainda antes do anúncio do Anjo. Um “voto” que só podemos verdadeiramente compreender se for enquadrado num anterior chamamento de Deus. Mas como poderia Maria, em consciência pura, estar prometida esposa a José tendo feito um tal “voto”? A única razão plausível para estar noiva, sem pretender vir a conhecer homem, é que José também tivesse feito um “voto” semelhante, e que, portanto, nesse aspeto, os dois já estivessem de comum acordo. Como o terão dado a conhecer um ao outro, é algo que será sempre um mistério para nós, que lhes pertence e é de todo seu direito guardar segredo. Seja como for, a partilha de um semelhante “voto” poderia ser uma das razões que os fez tomar a decisão de constituir uma família muito particular: seriam um casal sem filhos gerados na carne. Talvez até desejassem estar solidários com a situação de Zacarias e Isabel, que sofriam a “maldição” de não terem filhos. Porém, Zacarias e Isabel não tinham feito nenhum “voto” de virgindade: tinham sempre tentado ter filhos. Por isso, a escolha que Maria e José se propunham seguir, teria de ser uma escolha, que de alguma maneira, procurasse também dar resposta à “obrigação” da Lei, do mandamento, para todo o casal, do dever de gerar filhos (Cf. Gn 1,28). Mas dadas as circunstâncias em que teriam decidido viver – em castidade perpétua – de que maneira, então, se poderia realizar o mandamento de Deus, de terem uma família com “filhos”? Certamente, se Deus os tinha chamado a uma vocação especial, também confiavam que Deus providenciaria uma maneira particular de corresponder ao mandamento. Seja como for, sendo ambos jovens, talvez tivessem ideais singulares que desejavam levar para a frente, ambos acreditando serem fruto de um “sonho” que Deus teria também colocado nas suas próprias histórias pessoais. E em que poderia consistir esse “sonho”?
O “sonho” de Maria e José
Faz parte, em algum momento da nossa vida, experimentar o desejo de coisas aparentemente impossíveis, associado a grandes ideais. Sobretudo quando somos jovens. Ora, um grande sonho, partilhado pelos jovens hebreus era poderem vir a ser os pais do Messias. Assim, é mais que razoável pensar que Maria e José também partilhassem desse sonho. Um sonho que, porém, teria de ter outros contornos, dada a escolha de viverem em castidade perpétua. E tomada esta decisão, como pensariam que se pudesse realizar neles a esperança de todo um povo? Porquanto possam parecer impossíveis alguns dos desejos na juventude – com alguma ingenuidade própria da idade – eles não poderiam sentir que dentro das suas vocações estava também o desejo de virem a ser pais de uma maneira “diferente”? De, sem se conhecerem, virem a ter filhos, adotando-os? Estes, segundo a Lei, adquiriam todos os direitos de filhos legítimos. Deste modo, como casal, teriam uma existência que não seria apenas um para o outro, mas seria também para outros. Assumiriam uma paternidade e maternidade diferentes. Entrariam na “missão” de dar as suas vidas pelo próximo, por aqueles que não tinham ninguém que cuidasse deles. O seu lar seria o lar dos mais “pequeninos”, dos que não tinham ninguém que os amasse. E órfãos não faltavam nas terras de Israel. Ao mesmo tempo – e poderia ser o “desejo” central do seu projeto – acalentariam que, entre os filhos adotados, pudesse vir a estar aquele que seria o escolhido por Deus, como o Messias (Cf. Is 49,23). Afinal, não tinha Sara pensado ser mãe através da adoção? E Mardoqueu não tinha adotado Ester, por quem veio a ser salvo o povo de Israel? (Cf. Est 4,12-14). Estas histórias – e outras – não eram constantemente meditadas e reinterpretadas entre o povo de Israel? E quem sabe se Maria não as teria também partilhado – e tantas outras coisas – com a sua parente Isabel? A esperança de ser mãe do Messias fazia parte dos sonhos de qualquer mulher hebreia. Seja como for, é natural que Maria e José pudessem ter uma sua visão e interpretação “singular” da realização da esperança de Israel. E, porque a isso se teriam sentido chamados, também confiariam que Deus haveria de providenciar o necessário e, a seu tempo, haveria de justificar a escolha particular das suas vidas, “consagradas” a Ele. No entanto, como bem sabemos, as surpresas de Deus iriam revelar-se muito maiores do que todas as suas esperanças. Foi precisamente isso o que Maria e José viriam ainda a redescobrir, antes de viverem juntos. Deus iria acrescentar contornos totalmente novos ao “sonho” das suas vidas.
Os primeiros de muitos outros?
É natural que a novidade de Deus – com o anúncio do Anjo – tivesse perturbado os pensamentos de Maria e José. Mas, também lhes trouxe um sentido inesperado – aquele de que precisavam – para as suas vidas em comum. Se antes do matrimónio, como é normal, estavam apreensivos em relação ao seu projeto de vida, depois do anúncio do Anjo viriam a experimentar uma redobrada alegria. O prometido, que “esperavam” poder vir a adotar, afinal, não iria nascer de uma outra família hebreia, mas para sua grande surpresa, deveria “vir” até eles do próprio Deus e nascer de Maria! Uma tal novidade e mistério, era muito mais, imensamente mais, do que teriam desejado na sua “intenção comum” do projeto de vida. E se o desejo de adoção já era forte, então veio a tornar-se mais consistente e duradouro, ao ponto de Maria vir também a acolher os discípulos de Jesus como seus filhos (Cf. Jo 19,26). Por isso – é o meu ponto de vista – a seu tempo, Maria e José, depois de Jesus nascer e talvez só depois de voltarem do Egipto, terão adotado outras crianças. Estas seriam Tiago, José, Judas e Simão e as irmãs, de que não sabemos o nome (Cf. Mc 6,3). Assim, já a partir da própria família, Jesus veio a tornar-se o primogénito de muitos irmãos. E se ele era o centro e o “segredo” da vida familiar de Maria e José, teve, porém, de partilhar a atenção dos pais com os outros “irmãos”, como acontecia com a maior parte das famílias. Daqui que talvez possamos compreender que aos doze anos – sendo já Bar-mitzva (= filho da Lei) – o tivessem deixado à vontade no regresso de Jerusalém, pois estariam ocupados a tomar conta dos “irmãos” mais pequenos. Seja como for, Jesus era o único filho de Maria – e seu filho primogénito – como toda a gente sabia (Cf. Mc 6,3). E todos pensavam que também fosse filho de José (Cf. Lc 3,23). Mas quanto aos chamados “irmãos” de Jesus, não teriam eles sido adotados, tornando-se… os primeiros de muitos outros (Cf. Gl 4,5)?