Os evangelhos de Mateus e de Lucas apresentam, cada um, uma sua própria genealogia de Jesus. Numa primeira leitura, um e outro texto, parecem muito pouco interessantes. E como, na liturgia, estes textos só nos são dados a escutar em tempos diferentes, é provável que nunca tenhamos reparado como possam ser tão diferentes. Na verdade, praticamente, não se encontram, nas duas genealogias, nomes em comum. Um facto que se torna particularmente estranho quando verificamos que nem sequer o nome do pai de José é o mesmo. Perante esta surpresa podemos sentir algum desconforto – como o dá a entender Bento XVI, no seu livro sobre a Infância de Jesus – se queremos também nós entender o verdadeiro sentido das genealogias do pai adotivo de Jesus.
Desde há muito tempo existem várias tentativas para explicar as diferenças entre a genealogia de Mateus e a de Lucas. Atualmente, tende-se, com base no sentido que se lhes queira atribuir, a conferir-lhes uma grande artificialidade. Mas este ponto de vista da leitura das genealogias, por si só, pode explicar a diferença entre elas? Para além do sentido teológico que se lhes queira dar, o facto de serem tão diferentes, será mesmo que nos impede, definitivamente, de nos levar a pensar que possam ser verdadeiras? Ou pelo contrário, não poderá estar nessa diferença a chave para as entendermos? Penso que – sublinho que este é um meu ponto de vista – a resolução da questão da genealogia poderá encontrar contornos definitivos, se trouxermos para o centro da pesquisa a singular paternidade de José, que assumiu, como missão, ser pai adotivo de Jesus.
Duas genealogias ou duas origens?
A primeira nota da Bíblia de Jerusalém, ao evangelho de Mateus, faz uma breve síntese, que vale a pena citar, para entendermos o que se diz, em geral, acerca das duas genealogias. Lemos assim:
“A genealogia de Mateus, embora sublinhe influências estrangeiras do lado feminino (vv. 3.5 6) limita-se à ascendência israelita de Cristo. Ela tem por objetivo relacioná-lo com os principais depositários das promessas messiânicas, Abraão e David, e, com os descendentes reais deste último (2Sm 7,1 +; Is 7,14 +). A genealogia de Lucas, mais universalista, remonta a Adão, cabeça de toda a humanidade. De David a José, as duas listas só têm dois nomes em comum. Essa divergência pode explicar-se, seja pelo facto de Mateus ter preferido a sucessão dinástica à descendência natural, seja por admitir-se a equivalência entre a descendência legal (lei do levirato, Dt 25,5 +) e a descendência natural. Por outro lado, o carácter sistemático da genealogia de Mateus é realçado pela distribuição dos antepassados de Cristo em três séries de duas vezes sete nomes (cf. 6,9 +), o que leva à omissão de três nomes entre Jorão e Ozias e à contagem de Jeconias (vv. 11.12), como dois (esse nome grego pode traduzir os dois nomes hebraicos Iehoiaquim e Iehoiakin, muito semelhantes entre si). As duas listas terminam com José, que é apenas o pai legal de Jesus: a razão está em que aos olhos dos antigos, a paternidade legal (por adoção, levirato, etc.) bastava para conferir todos os direitos hereditários, aqui os da linhagem davídica. Naturalmente não se está a excluir a possibilidade de Maria também ter pertencido a essa linhagem, embora os evangelistas não o afirmem.”
Como podemos ver, no essencial, esta explicação atribui às duas genealogias diferentes leituras, partindo, naturalmente de listas diferentes, para a ascendência de José. Costuma-se atribuir a origem de cada uma das listas a diferentes tradições – de Mateus e Lucas – tendo como pressuposto, que cada uma tem a intenção de dar um sentido à origem de Jesus. Ora, se em parte é razoável pensar desta maneira, seria também de esperar que, apesar de tudo, as diferenças entre as genealogias não fossem tão grandes. Donde teremos de concluir, uma de duas coisas: ou se atribui uma quase total artificialidade às genealogias, como sendo uma “construção histórica” para fazer entrar Jesus dentro de uma “linha histórica” ou, por outro lado, se tenta encontrar uma outra explicação que possa justificar, com mais naturalidade, a marcada diferença entre elas. E o que poderia ter ocorrido para se atribuir a José duas genealogias tão diferentes e que, ao mesmo tempo, pudessem ser, de algum modo, verídicas? Podemos pensar que José, de alguma maneira, tivesse duas origens? Ou seja, que se visse a si mesmo como filho com mais de uma “história” paterna?
José, filho adotado?
Se pretendermos acreditar na veracidade “histórica” das duas genealogias – tendo em conta que era comum “adaptá-las”, conforme era mais conveniente, à memória dos muitos nomes que havia numa ascendência – penso que só nos resta uma solução “natural” – já implícita na nota bíblica citada – que nos poderá fazer compreender o porquê das suas diferenças. É esta: segundo a versão de Mateus, José teria sido um filho adotado por Jacob. E, segundo a versão de Lucas, José teria sido filho natural de Eli. Esta possível solução surpreende-nos? Devemos ter em conta que a adoção não era, de maneira nenhuma, incomum naquele tempo. Sendo assim, se enveredarmos por este caminho – de José ter sido adotado por Jacob e de ser filho natural de Eli – chegamos, quase de imediato, a ter uma compreensão natural da grande diferença entre as duas genealogias. De consequência, seria a partir deste motivo de marcada diferença que depois se procuraria, com toda a naturalidade, fazer uma leitura teológica e bíblica, para cada uma das genealogias. Genealogias, essas, que teriam sido conservadas e por José e familiares. Que José teria guardado – sobretudo, no seu coração – porque ligado naturalmente a uma e afetivamente (e legalmente) ligado à outra. E se as razões da adoção podiam ser muitas, o mais interessante e importante é o efeito que esse facto poderia ter tido na vida de José, como filho e, depois, como pai adotivo e educador de Jesus.
José, sonhador e justo
A razão principal porque José teria assumido e conservado as duas genealogias, poderia então estar no facto de ter amado, ao mesmo tempo, Jacob e Eli. Jacob, que o gerou segundo a lei, e o criou e educou, a quem amou como pai verdadeiro. E Eli, que também amou – talvez sem nunca o ter visto – tendo só dele conhecimento através de Jacob. E sabemos que quando se ama também se sonha com o que se ama e se deseja conhecer. Se foi assim, quem sabe como seriam os sonhos de José, sempre que se deitava com o pensamento de “reconstruir” o rosto e a história do seu pai Eli? Tal desejo não o faria desenvolver, desde muito cedo, a virtude do discernimento e da justiça? E quem sabe se não nasceu nele próprio o desejo de ser como o seu pai Jacob, de também, ele mesmo, vir a adotar alguém como filho? Um desejo que se teria tornado num sonho que nem ele mesmo, alguma vez, teria pensado que pudesse vir a ser tão belo! Enfim, poderíamos fazer ainda muitas outras considerações – no âmbito espiritual e psicológico – mas penso que estas serão suficientes para entendermos melhor como, na sua história particular, José poderia ter sido especialmente “preparado” para vir a ser o pai adotivo de Jesus, ser um homem justo, e que entendia os “sonhos”.
Uma «paternidade singular»
Na dinâmica própria do crescimento, é natural que tenha sido através da paternidade de José que Jesus tenha “aprendido” a assumir o passado histórico do seu povo, não isento de problemas e pecados, como mostra a genealogia de Mateus. De facto, há nesta genealogia nomes que podiam não estar, mas estão. E quem sabe se não foi o próprio José que quis que permanecessem na lista do seu “pai” Jacob? Desta maneira, podemos compreender melhor o sentido do anuncio feito a José, em que no sonho o anjo diz que o filho que nascerá de Maria, virá para salvar o povo dos seus pecados. Por outro lado, há a origem “misteriosa” de Jesus. Será também – sublinho o também, dado que Maria terá um papel preponderante – através de José, o “construtor” (= tecton) que Jesus “aprenderá” a arte de “reconstruir” e conhecer a história da sua origem mais profunda, que remonta ao próprio Deus Pai. Uma origem que a genealogia de Eli aponta até ao Céu. Penso que é neste sentido que, também nós, somos chamados a olhar para além da nossa própria história “dinástica” e a procurar conhecer uma outra bem mais misteriosa, que remonta à origem na nossa verdadeira natureza. Uma origem que não está nos laços de sangue, mas sim em Deus (cf. Jo 1,12-13). Então, esta procura poderá também ter para nós contornos novos e inesperados, se de facto for verdade que José foi um filho adotado. Porque sendo todos chamados a ser filhos adotados – no batismo – poderemos também compreender melhor a missão que José tem para connosco e que teve, de maneira particularmente especial, para com Jesus. A missão de… uma paternidade singular.