Num momento de diálogo durante um projecto interdisciplinar de Filosofia sobre “Jogo e Causalidade Física”, após as comunicações relacionadas com as neurociências, o vício do jogo e o estímulo ao consumo, tocou-se no assunto das distracções digitais. Uma das participantes partilhava a experiência de estar numa expedição ao Monte Evereste e ter de se levantar cedo. Por isso, pensou em usar o ecrã para se manter acordada e navegar pelas redes sociais até chegar à hora de partir. O problema é que ao aproximar-se da hora reparou que não tinha fechado o saco-cama e que, sem se dar conta, o corpo havia ganho alguma dormência que comprometeria a subida naquela madrugada e não só. As redes sociais distraíram-na de tal forma que, literalmente, ia morrendo de frio sem se dar conta disso.
Num encontro da iniciativa cultural EcoOne (Ecologia para um Mundo Unido) conversava com Sergio Rondinara, filósofo da Universidade Sofia em Loppiano (Itália), sobre a crise ambiental. Sergio recordava-me a ideia do teólogo Jürgen Moltmann sobre um dos sinais mais evidentes da crise ambiental, dizia – «vivemos uma vida cada vez mais artificializada». Naquela altura não havia smartphones com acesso à internet que existe hoje ou redes sociais. Por isso, o ritmo não se abrandou, mas acelerou-se.
Na sua Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, o Papa Francisco alerta no n. 115 que — «Pode acontecer também que os cristãos façam parte de redes de violência verbal através da internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio digital. Mesmo nos media católicos, é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia. Gera-se, assim, um dualismo perigoso, porque, nestas redes, dizem-se coisas que não seriam toleráveis na vida pública e procura-se compensar as próprias insatisfações descarregando furiosamente os desejos de vingança. É impressionante como, às vezes, pretendendo defender outros mandamentos, se ignora completamente o oitavo: «não levantar falsos testemunhos» e destrói-se sem piedade a imagem alheia. Nisto se manifesta como a língua descontrolada «é um mundo de iniquidade; (…) e, inflamada pelo Inferno, incendeia o curso da nossa existência» (Tg 3, 6).» A artificialização não existe apenas nas máquinas e dispositivos novos que se criam, mas também se revela no modo como interagimos entre nós mediados pelos dispositivos. Nesse sentido, o resultado da artificialização acaba por ser a divisão no seio das nossas comunidades. Como inverter esta tendência?
Eu saí das redes sociais, mas existem muitas pessoas que ainda lhes dão valor. Tolero o WhatsApp, mas uma multidão de pessoas considera-o o modo melhor de se manterem em contacto com familiares e amigos. Reduzi substancialmente o meu tempo de ecrã, mas há quem seja impossível prescindir disso por ser o seu ganha-pão.
“Des-artificializar-se” não significa negar o que é artificial e faz parte das nossas vidas. Significa antes viver desapegado do que é artificial. Quando naquela reunião de projecto questionei se o desapego não seria o modo de garantir que as minhas escolhas seriam livres, responderam-me — «Oxalá. O mundo seria bem melhor.»Diante da inevitabilidade digital, sobrevivia a esperança.

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