Para nós solteiros, qual é o sonho de Deus? de Chiara Bertoglio, em Avvenire, a 12 maio 2024
«Não casadas, não consagradas, não pais». Mas as pessoas crentes sós, estão cansadas de ser identificadas pela Igreja só com um “não”. Intitula-se “Nem carne nem peixe” (Effatà, pág.218, 17€) o novo livro da teóloga e musicóloga Chiara Bertoglio presentado hoje no Salão do livro de Torino, de que publicamos aqui amplos excertos da introdução.
Há vários anos, uma amiga que administrava um portal de informação em língua inglesa e de inspiração cristã convidou-me a escrever qualquer coisa sobre os solteiros cristãos, e, mais ou menos no mesmo tempo, também de Avvenire, me foi dirigido um pedido análogo. Iniciou assim a exploração de um tema que diz respeito a muitíssimas pessoas, mas que até agora não foi tratado adequadamente, ou seja, a condição das pessoas não casadas e sem relações afetivas estáveis no mundo de hoje, com um olhar particular aos crentes cristãos.
Estes, de facto, encontram-se numa situação particularmente delicada: normalmente, graças à sua formação humana e religiosa, acreditam no amor, sonham com uma família sólida, fecunda, desejam responder à vocação à capacidade de gerar que está ínsita no amor cristão…, mas encontram-se sós, por vezes sem saber o porquê, e vivendo uma condição de profundo sofrimento. Às vezes sentem-se errados, “inamáveis”; às vezes percebem-se não realizados, não resolvidos, também por causa de uma abordagem vocacional que reduz demasiado simplisticamente as experiências de vida cristã a um aut/aut entre vocação conjugal e vida consagrada.
Aos solteiros cristãos é ensinado que existe um projeto, um sonho de Deus sobre a sua vida; mas não se podem resignar com o facto que este sonho se reduza a um “não-ser”: não-casados, não-consagrados, não-pais.
E de facto não pode ser assim: mesmo se não para todos a vida matrimonial é o modo para realizar a própria vocação à santidade, e por outro lado nem sequer a consagração religiosa é aconselhável a todos, é profundamente errado pensar que o sonho de Deus sobre tantas pessoas, sempre mais numerosas, seja um sonho “negativo”. É uma ideia de verdade deletéria, que não pode minar a autoestima das pessoas e a sua confiança em Deus.
Urge por isso encontrar o tempo de escutar as pessoas solteiras, de as compreender em profundidade; e de articular, com elas e para elas, uma linguagem que permita compreender que “vocação” não é somente matrimónio ou vida consagrada, mas é antes de mais, na raiz, a vocação à filiação relativamente ao Pai e à nupcialidade. Uma dimensão que cada crente deve ser educado a viver, porque é na relação íntima e exclusiva, se bem que profundamente eclesial, com Aquele que “está à porta e bate”, que se realiza a fecundidade primária de todo o seu humano. Ninguém é chamado à esterilidade, ninguém é chamado a uma solidão “vazia”. Para todos, ao invés, é o chamamento à relação, à fecundidade, a poder gerar.
Estas, porém, podem permanecer só belas palavras, palavras teologicamente estruturadas, mas que não conseguem tocar a realidade das pessoas muitas vezes feridas, muitas vezes profundamente sós: é fundamental que a Igreja, nas suas instituições, nas suas hierarquias, mas também e sobretudo na sua vida vivida, litúrgica, sacramental e pastoral, saiba individuar os modos para fazer perceber a cada um, solteiro inclusive, que todos têm um lugar bem preciso, único e insubstituível no tecido eclesial e aos olhos de Deus, e que este lugar é, e deve sempre ser, fecundo, nupcial e generativo.
Não é por acaso, creio, que muitas das realidades de que contamos a história têm nomes que apelam a uma plenitude, a uma superabundância, àquela realização de alegria e de Graça que só Deus pode dar à vida de cada homem e cada mulher, em qualquer situação de vida que estes se encontrem. Existem as “doze cestas” que, no Evangelho, recolhem a enormidade de pão que sobrou do milagre generoso e transbordante de Jesus (12 cestas); existem os encontros “no poço” (Encontro no poço), que aludem à água viva que Jesus dá à Samaritana a quem ele mesmo acabara de pedir de beber, fazendo depois dela por sua vez nascente que jorra para a vida eterna; existe o “sal” (Grupo Sal) que exalta o sabor da vida, e torna saborosas as próprias pessoas para que se possam tornar “temperadas” pela vida dos outros; existe Betânia (Grupo Betânia), ícone de relações de tal maneira plenas e fecundas ao ponto de abrir a amizade a um profundo enriquecimento reciproco, comunhão intensa, alegria verdadeira. Neste libro encontraremos diversas realidades, espalhas na Itália, na Europa e na América, para além da web, e que procuram dirigir-se, de modo diverso e complementar, à realidade dos solteiros cristãos.
Existem percursos de acompanhamento de grupos de solteiros, iniciados por sacerdotes diocesanos e consagrados de várias ordens religiosas (franciscanos, salesianos, carmelitas…), alguns com um traço mais espiritual, outros mais socio/psicológico; alguns que requerem compromissos de frequência assíduos, outros que são pensados mais como uma porta aberta em entrada e em saída. Realidades que favorecem o encontro entre as pessoas e o crescimento humano e espiritual através de uma formação também cultural, além de permitir o instaurar-se de amizades significativas que, nalguns casos, podem também resultar em relações de casal finalizadas ao matrimónio. Em geral, muitas destas realidades propõem-se também como forma de ajudar as pessoas solteiras a curar aquelas feridas do passado que muitas delas trazem dentro: namoros acabados ou nunca iniciados, nalguns casos também matrimónios que caíram sob o peso do quotidiano ou de fadigas de vário tipo.
Diversos dos iniciadores destes caminhos realizaram também uma reflexão profunda sobre a temática dos solteiros, seja do ponto de vista antropológico (como no caso de don Roberto Carelli) seja daquele teológico (como don Renzo Bonetti): naturalmente, os dois níveis se cruzam em continuação.
Há depois realidades que procuram coordenar outras realidades, e propor vias de acesso a percursos que por vezes são difíceis de encontrar, e que ao invés suscitam interesse apenas são conhecidos: é disso um exemplo o portal Single Cattolici Italia que se propõe precisamente dar voz às tantas propostas que são realizadas em diversos contextos.
Na segunda parte do livro exploramos outras realidades digitais, que se podem precipitadamente definir como “sítios de encontros católicos”, mas que na realidade são sempre muito mais. antes de mais, têm uma clara perspetiva matrimonial, embora se gloriem das simples amizades que conseguem favorecer; em segundo lugar, promovem a formação cultural e religiosa dos membros, e realizam oportunidades de encontros presenciais, com passeios, eventos, iniciativas de oração, peregrinações.
Obviamente, podem haver perplexidades sobre o uso de internet para encontrar a alma gémea, sobretudo se o ponto de vista com que se avaliam estas realidades é o da fé e da vocação: pode parecer quase uma coisa forçada recorrer a pesquisas na web para encontrar a pessoa que Deus pensou como companheiro ou companheira de vida! E, no entanto, sabemos que a internet é um meio, e como tal pode ser utilizado bem ou mal, santamente ou de modo desviante.
É uma oportunidade, que, utilizada de modo são e equilibrado, pode concretamente ajudar muitas pessoas a sair da solidão. trata-se, de qualquer modo, de realidades que devem ser avaliadas com discernimento; e, por este motivo, cada uma das histórias que contamos é acompanhada de pontos de reflexão e de trabalho, que podem ser utilizados (também de modo seletivo) pelo individuo para uma revisão de vida ou pelo grupo para uma discussão e um confronto.
Chiara Bertoglio – Avvenire
Artigo de Avvenire de 12 maio 2024
(aqui o link para o artigo original)
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