Todos os quatro evangelhos afirmam que Jesus morreu numa sexta-feira. Como, entre os judeus, os dias eram contados de um pôr do sol ao outro, a derradeira jornada de Jesus teve início no pôr do sol de Quinta-Feira Santa e terminou no pôr do sol de Sexta-feira Santa. É neste espaço de tempo que se situam os seguintes acontecimentos: Última Ceia, Getsémani, prisão, condenação, morte e sepultura. Mas se em relação à sucessão destes acontecimentos, todos os quatro evangelhos estão de acordo, aparentemente divergem quanto ao que sucedeu na Última Ceia. Enquanto os Sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) dão a entender que Jesus celebrou a Páscoa naquela última noite, estranhamente João afirma que as “autoridades” ainda a iam celebrar, precisamente na noite seguinte (Cf. Jo 18,28). Porque João faz esta afirmação? Seria possível que no templo de Jerusalém houvesse imolações de cordeiros pascais em dois dias consecutivos? Como um tal procedimento, num mesmo lugar, é muito pouco provável, senão mesmo impossível, impõe-se a resolução da seguinte questão: o dia de Páscoa seria na sexta-feira ou só no sábado seguinte? Por outras palavras: a Última Ceia foi uma ceia pascal?
Chegámos assim à chamada questão da Páscoa. Que apesar de ter despertado, desde cedo, a procura de uma solução para explicar aquela estranha divergência entre os evangelhos, na verdade ainda não se conseguiu chegar a uma conclusão de todo satisfatória, unânime e suficientemente convincente. Para onde, então, voltar o nosso olhar para encontrar uma solução? Penso que a solução da questão da Páscoa – é a minha convicção – talvez tenha estado sempre diante dos nossos olhos, nos próprios evangelhos. Por isso creio que uma explicação só poderá adquirir contornos definitivos se trouxermos para o centro da pesquisa a dinâmica das decisões das autoridades. E daqui surge outra pergunta, que penso ser crucial para nos podermos encaminhar para uma solução satisfatória: será que Caifás, querendo resistir, com todas as forças, à “onda messiânica” gerada por Jesus, não se terá deixado precipitar para uma tentativa temerária, de “apanhar” Jesus com um audacioso «engano»?
A intenção de Caifás
Quando Caifás, finalmente, veio a ter diante de si aquele que considerava como a mais perigosa ameaça para a paz do povo judeu – e, na verdade, para sua própria paz – encontrava-se em sua casa, onde já tinha convocado os sumos-sacerdotes, os doutores da Lei e os anciãos do povo. Mas de que convocação se tratava? Segundo a Lei não podia haver julgamentos nas noites festivas. E sendo – segundo os Sinópticos – uma noite sagrada, que motivo seria suficientemente forte e plausível, para fazer sair as autoridades das suas casas, no serão da solene ceia pascal? Parece-me que um só motivo, de direito e de dever, seria possível: para fazer o reconhecimento da autenticidade do Messias. A noite de Páscoa era, e ainda é, a noite da esperança da revelação do Messias. E agora, ali estava aquele que gerava tantas expectativas. Por conseguinte, não se podia perder tal ocasião. Era preciso e urgente, a todos, estarem presentes e averiguar, de uma vez por todas, quem era Jesus. Mas fazer o reconhecimento não significa atestar. De facto, a intenção de Caifás era que se concluísse que Jesus era um falso profeta. No entanto, a reunião foi cheia de contradições, sem que ninguém chegasse a acordo, quanto ao que Jesus era, fazia ou dizia. Mas teria Caifás arriscado tanto, com aquela convocação, se não tivesse, ele mesmo, alguma prova concreta e definitiva de que Jesus era um falso profeta? Os evangelhos dizem que «eles» quiseram apanhar Jesus à traição, ou seja, com um engano. Porém, não dizem de que engano se tratou. Apenas ficamos com a impressão que, o que quer que tenham pensado, teria que ver com algo particular da festa, cujo o plano lhes tinha suscitado um repentino temor de prender Jesus durante a mesma. Mas, foi precisamente na noite de Páscoa que o prenderam! O que queriam evitar? Ter de o apanhar no momento festivoda ceia pascal? Poderia ser este o momento em que tentariam fazer cair Jesus num “engano”? Se era o caso, então a prova que Caifás pessoalmente necessitava não seria apenas saber se Jesus, efetivamente, tinha feito a ceia pascal? Se assim foi, então o engano das autoridades terá sido revestido de uma tal audácia, que nem os próprios evangelistas o quiseram revelar diretamente. No entanto, não o deixaram passar totalmente despercebido, donde a aparente e evidente divergência entre os Sinópticos e João.
Um «engano» em vista de uma prova?
A ser verdade que o engano foi revestido de uma singular audácia, então também é de esperar que a solução para a questão da Páscoa, seja particularmente surpreendente. Por outro lado, terá de ser solidamente fiel a todos os evangelhos e aos resultados das investigações astronómicas. Feitas estas considerações, em que poderia consistir, então, o audacioso engano das autoridades?
No tempo de Jesus, a determinação do dia de Páscoa dependia da declaração oficial do começo do mês de Nisan, o mês da primeira lua cheia da primavera. Ora, cada mês começava com o avistamento da lua nova, sendo este só possível, no fim da tarde do último dia do mês anterior, um pouco depois do pôr do sol. Como o avistamento dependia também das condições atmosféricas, havia regras rigorosas, que reduziam a incerteza da observação. Em primeiro lugar, cada mês lunar tinha entre 29 e 30 dias. Se no fim do dia 29, ao anoitecer, a lua nova não fosse avistada, o novo mês era declarado no fim do dia seguinte, do dia 30. Pelo que a variação do número de dias de cada mês era, no máximo, de um dia. Em segundo lugar, a confirmação do avistamento da lua nova requeria, pelo menos, duas testemunhas credíveis para que a “comissão” do calendário pudesse declarar o início do novo mês. Um procedimento que – segundo a tradição talmúdica – em mais de uma ocasião e em segredo, foi mira de manipulação pelo grupo dos saduceus, em vista de anteciparem o começo do mês. Ora, se isto aconteceu, não poderemos pensar que também tivessem tentado fazer, algo semelhante, por ocasião da última Páscoa de Jesus? Em fazer com que o início do mês de Nisan fosse declarado um dia mais cedo, em vista de levar Jesus comer a Páscoa no dia “errado”? Desta maneira, teriam a prova definitiva de que era um falso profeta, pois um verdadeiro profeta nunca se deixaria enganar. Pelo que a Páscoa oficial, celebrada por todo o povo, teria sido um dia mais cedo, conforme indicam os Sinópticos. E assim, Caifás só precisaria do testemunho de alguém que, desconhecendo o engano, lhe confirmasse que Jesus teria celebrado a Páscoa. Testemunho que veio, oportunamente e astutamente, a ser oferecido por Judas, o que permitiu a convocação do Sinédrio. E após a entrega de Jesus a Pilatos, «eles», por sua vez, na pessoa do Sumo-sacerdote – e em segredo – celebrariam a Páscoa, vicariamente, por todo o povo, no dia “certo”. Desta maneira, o dia da morte de Jesus era, oficialmente, e segundo os Sinópticos, o 15 de Nisan, dia de Páscoa. Mas, na realidade, o dia da morte de Jesus, era, astronomicamente, o 14 de Nisan, o dia em que os cordeiros deveriam ter sido imolados, em vez do dia anterior. Uma coincidência que parece não ter passada despercebida a João.
De volta à astúcia das origens
Será possível pensar que as coisas se tenham passado mesmo assim? Tenho que admitir que esta solução é um tanto temerária. Mas também não vejo que outra mais simples possamos encontrar. Seja como for, nunca saberemos o que aconteceu ao certo. No entanto, voltando ainda à noite da prisão de Jesus, na casa de Caifás o momento era de enorme gravidade e solenidade. Podia estar ali mesmo o Messias diante deles? Só o facto de ter de ser o próprio Caifás a “gritar”, ao agora silencioso nazareno, a pergunta que a todos sufocava, confirma que «eles», naquele momento, tinham chegado à derradeira possibilidade de o poder derrubar. O alívio de Caifás só veio com a resposta que Jesus deu – a única apropriada, como Messias e Filho de Deus, para a noite de Páscoa – que ultrapassou tudo o que poderiam considerar teologicamente razoável. As palavras de Jesus foram de tal maneira incisivas, que derrubaram as poucas forças que ainda continham as emoções das autoridades contra ele. Donde o súbito rasgar das vestes do Sumo sacerdote, a “sentença” imediata e a agressividade consequente contra Jesus. Tudo o resto que se seguiu foi feito apressadamente, como também lhes convinha. Podemos dizer que a convocação de Caifás, na noite de Páscoa, foi o culminar do desespero das autoridades. E creio que terá sido a primeira e única vez que as autoridades de Israel “tremeram” e temeram diante da possibilidade de ter de averiguar, ao mais alto nível, se alguém era o Messias. Até ali, não tinham conseguido nunca contradizer Jesus. Donde o desesperado despertar da audácia para um engano singular, diferente de todos os outros, para provar, definitivamente, que Jesus era um falso profeta. Um engano que tinha que ver com o comer. Um engano que tinha que ver com o tempo justo para comer. Um engano que, misteriosamente, tinha que ver com a própria génesis da Eucaristia. Um engano que, seja ele qual for, nos leva… de volta à astúcia das origens (Cf. Gn 3,1-7).