O «indulto pascal» de Pilatos – na resolução da questão do pretório

Uma antiga tradição localiza o pretório de Pilatos junto ao Templo de Jerusalém, onde outrora surgia a Fortaleza Antónia. Naquele ponto tem início a Via Dolorosa, na qual fazem a Via Sacra a maioria dos peregrinos. Porém, um outro lugar tem vindo a ser apontado, por arqueólogos e biblistas, como a localização exata do pretório. Situa-se perto da porta de Jafa, junto da Torre de David, onde outrora se erguia o Palácio de Herodes o Grande. Esta é a razão por que, hoje em dia, alguns grupos de peregrinos iniciam ali a Via Sacra, abandonando a antiga tradição cuidada pelos franciscanos. Diante destas sinalizações – e sobretudo quando nos encontramos como peregrinos em Jerusalém – é natural que possamos sentir alguma desorientação, no que respeita à verdadeira localização do pretório, onde Jesus foi condenado. Para qual dos locais nos devemos dirigir? A escolha junto à porta de Jafa vai ganhando sempre mais relevo entre os estudiosos. Apesar disso, a força da tradição da Via Dolorosa – de memória muito antiga – continua a atrair a grande maioria os peregrinos. E talvez por estar na essência das tradições antigas conservarem informações verdadeiras – para que estas não venham a ser esquecidas – a questão do pretório “teima” em manter-se em aberto, imprimindo ao debate um grande impasse. Para que lado, então, nos devemos voltar? Para chegar a uma solução definitiva, creio que a resolução da questão do pretório – esta é uma minha convicção – só poderá alcançar contornos mais determinantes se trouxermos para o centro da pesquisa o comportamento singular de Pilatos, em Jerusalém, associado ao simbolismo único do dia de Páscoa.

Na origem, o termo pretório indicava o lugar que o comandante (= pretor) ocupava num acampamento militar. Como este coincidia com o espaço onde residia o comandante, com a “praxis romana”, o termo pretório veio a designar as residências, onde estavam os governadores. Era, no entanto, comum os pretores administrarem a justiça junto de uma basílica, no fórum ou numa praça pública, fora da residência. Sendo assim, poderia Pilatos estar, no dia de Páscoa, fora da sua residência habitual em Jerusalém? Isto é, não no Palácio de Herodes o Grande, mas na Fortaleza Antónia? O historiador Flávio Josefo descreve este edifício como tendo todas as comodidades de um palácio real. De facto, foi construído por Herodes o Grande, como a sua primeira residência em Jerusalém. Do cimo de uma das suas quatro torres, podia-se ver todo o Templo, a que se tinha acesso por diversas escadas. Estas permitiam a pronta intervenção dos soldados, sempre que se verificassem desordens particulares. Uma eventualidade que não era infrequente, nas ocasiões das grandes festas, sobretudo pela Páscoa, a festa que recordava precisamente a libertação da opressão do Egito. Depois do exílio de Arquelau, que sucedeu no reino do seu pai Herodes, a Fortaleza tinha sido ocupada por uma guarnição romana. E quando os procuradores, de Cesareia Marítima onde habitualmente residiam – tinham ali o seu pretório oficial – subiam a Jerusalém, preferiam ficar, de costume, no Palácio de Herodes o Grande que estava situado na atual Cidadela, longe dos rumores dos quarteirões populares. Mas nos momentos de maior tensão – sobretudo na festa da Páscoa – supõe-se que era prática comum deslocarem-se – por um ou mais dias (?) – para a Fortaleza Antónia, para poderem controlar os movimentos das grandes multidões, que subiam ao Templo, durante as grandes festas. É baseando-se nesta verosímil suposição, que se costuma localizar o pretório – de que se fala nos relatos da Paixão de Jesus – na Fortaleza Antónia. Mas será esta suposição suficientemente forte para justificar a presença do governador junto ao Templo no dia de Páscoa? Não bastaria a presença do tribuno, que comandava a coorte, para controlar o que se passava no Templo? É claro que seria normal, quando os governadores subiam a Jerusalém, fazerem visita às suas tropas instaladas na Fortaleza. Mas não o fariam ainda antes da festa? No entanto, o facto da mulher de Pilatos ser obrigada a enviar alguém para contar o sonho que tivera, não poderá ser indicador que os dois estiveram em residências diferentes na noite anterior? E se Pilatos estava de “residência” na Fortaleza Antónia, porque motivo seria? Seria para cumprir uma sua “tradição”, que fazia mover a multidão ao seu encontro, para junto do Templo, no despertar do dia de Páscoa? 

O hábito de libertar um carcerado no dia de Páscoa, parece só respeitar a Pilatos, e só se encontra relatado nos Evangelhos. Parece que Pilatos queria, apenas, finalizar um ato, que consistia na declaração final de quem iria ser libertado e dos que deveriam ser executados. Tudo isto diante da multidão que sempre acorria para estes acontecimentos. E nada mais, uma vez que em dia de festa não é costume, em lado nenhum, tratar, publicamente, de processos judiciais. Estes teriam sido já tratados nos dias anteriores, estando as decisões já tomadas – mas talvez ainda por declarar – em consonância com o desejo que o povo teria já manifestado: a libertação de Barrabás. Isto diante do pretório habitual, o Palácio de Herodes o Grande, a residência de Pilatos em Jerusalém. Então, qual seria a razão da escolha do dia de Páscoa e da hora matutina para declarar a indulgência?

A primeira hora da madrugada – a alva – é a hora do canto da vitória, da saída do Egito e da passagem do Mar Vermelho. A força simbólica e emotiva desta hora tinha o seu ponto máximo na madrugada do dia de Páscoa. Sabendo Pilatos da esperança de libertação que os judeus tinham em relação a Roma, não poderia ter desejado dar largas o seu conhecido cinismo, assinalando com mais um dos seus gestos, precisamente o dia de Páscoa? Marcando a sua posição como o verdadeiro libertador? Dadas as circunstâncias, teria sentido supor que o povo já se tivesse habituado a aguardar a declaração final de Pilatos, que seria sempre feita, muito cedo, na manhã de Páscoa. E se a hora era de grande importância simbólica, o lugar não teria também teria de ser, igualmente emblemático? Onde, então Pilatos, iria marcar a sua presença, para fazer o indulto pascal? A Fortaleza Antónia enquadrava-se perfeitamente na simbologia do Templo, o centro do culto que promovia a libertação de Israel. Sendo assim, Pilatos poderia ter “subido” para lá ainda antes da vigília de Páscoa, levando no seu cortejo os malfeitores, enquanto o povo levava os cordeiros para o Templo. A sua “oferta” de libertação iria coincidir com a hora messiânica mais esperada. Sobretudo, seria feita junto do local donde se esperava que surgisse a libertação de Israel. O gesto libertador mostraria quem é que tinha o poder indulgente – Roma – e, ao mesmo tempo, faria ver o castigo para os que se insurgissem contra César. Mas se este tipo de procedimento era conforme a maneira de ser de Pilatos, desta vez, viria a tornar-se uma armadilha contra si mesmo, ao apareceram-lhe, repentinamente, as autoridades, trazendo-lhe Jesus. Estas iriam impor-lhe um “cordeiro” para imolar. E Pilatos, apanhado de “surpresa”, impelido pela “pressa” e pressionado com a “insistência” das autoridades judaicas, nem sequer conseguiria chegar a bom termo, na sua tentativa posterior de fazer que o indulto tomasse uma nova direção, em alternativa a Barrabás. Por conseguinte, teve de chegar à condenação de Jesus com um “processo” arbitrário – em cima da hora e na Fortaleza – só porque Jesus não era um cidadão romano. Mas o cinismo não ficou para trás. Pilatos fez sentar Jesus numa tribuna – é uma das traduções possíveis – para assim o apresentar à multidão, como rei. E sendo o lugar, descrito por João, elevado e ricamente pavimentado – o Lajedo ou Gabatá –, enquadra-sedentro do estilo luxuoso das construções de Herodes, e aplica-se perfeitamente à Fortaleza Antónia.

É possível que em Jerusalém os habitantes pudessem associar o “pretório”da Fortaleza Antónia ao dia de Páscoa? João diz, simplesmente, que Jesus foi levado para o pretório, enquanto os outros evangelistas apenas dizem que foi conduzido a Pilatos. Mas Marcos indica o pretório como sendo o palácio. Seria talvez porque ainda fosse viva a recordação da primeira morada de Herodes o Grande?

Se for razoável concluir que o simbolismo único do dia de Páscoa e a maneira de agir de Pilatos foram determinantes para a escolha do lugar e da hora da declaração do indulto pascal, e, ao mesmo tempo, pudermos chamar a Fortaleza Antónia de pretório, porque poderia ter sido, de facto, a residência de Pilatos, ao menos, na véspera e noite de Páscoa, então podemos confiar na antiga tradição dos peregrinos que, a partir do século IV, localizam o lugar do “processo” de Jesus não na cidade alta (entenda-se no Palácio de Herodes o Grande), mas num ponto do vale central de Jerusalém, chamado Tyropoen, mais ou menos entre o lugar onde se inicia a Via Dolorosa e o Muro das Lamentações. Esses mesmos peregrinos insistiam que daquele ponto, olhando para norte, o Calvário encontrava-se para o lado esquerdo, isto é, a ocidente e que era preciso subir para o lugar da crucifixão. Uma tradição que se, de facto rege, nos leva… de volta ao lugar tradicional.

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