Oração … com a criação e com a história

Pequeno percurso sobre a oração #9

 de Vocazione Francescana

No mês passado deixámo-nos com a leitura daquela oração que são Francisco escreve no monte Alverne, naquele momento crucial da sua vida em que a experiência mística e a vida fraterna se encontraram no máximo da sua tensão: os Louvores de Deus Altíssimo.

Hoje queremos retomar a partir daqui, daquilo que acontece depois do evento prodigioso dos estigmas.

Descendo do Alverne, Francisco continua a reelaborar aquele mistério pascal cujos sinais ficaram impressos no seu corpo. A visão do Alverne como dizíamos, refere-se a todo o mistério pascal, não somente ao crucificado, mas também à glória, na imagem luminosa e ardente do Serafim; e o primeiro biografo descreve também na reação aparentemente contraditória de Francisco (definido triste e feliz) aquela característica tipicamente pascal do cruzamento entre morte e ressurreição: não só uma ou outra.

Se, portanto, no monte, Francisco foi posto em confronto com a totalidade do mistério pascal, não admira que descendo ao vale ele leve consigo não só os estigmas (sinais da paixão) mas também o olhar transfigurado da Páscoa, que consegue intuir o “mundo ressuscitado”, de que a Ressurreição de Jesus é o início e o motor.

E eis que assim nos embatemos finalmente, talvez com um pouco de surpresa, no texto provavelmente mais famoso do Pobrezinho de Assis: o Cântico do irmão sol, ou Cântico das criaturas. A cronologia tradicional das Fontes Franciscanas coloca a composição desta oração na primavera de 1225, precisamente alguns meses depois dos Estigmas, em São Damião, paraonde Francisco se tinha dirigido com uma situação física muito provada, pelo agravar-se das suas doenças e sobretudo pela dolorosa doença nos olhos (provavelmente contraída na viagem à Terra Santa) que o tornava quase cego e intolerante à luz.

Esta condição existencial então faz emergir uma vez mais a grande tensão presente entre a vida do santo de Assis (obrigado, literalmente, a estar no escuro) e as palavras da sua oração (testemunho brilhante de um olhar bom e enamorado sobre o mundo). Pondo de parte o “romantismo”, um pouco superficial ou ingénuo, com o qual talvez tenhamos sempre abordado o Cântico estamos em condições agora de reencontrar o cruzamento de trevas e luz, de dor e de alegria, que nos manda ao mistério pascal e que se pode tornar uma nova chave de leitura para esta oração, que é também a primeira verdadeira poesia da literatura italiana.

No Cântico é possível relevar uma estrutura bastante clara. Está presente uma “moldura” inicial e final, que nos primeiros quatro versos se dirige a Deus altíssimo e bom, o único ao qual convém o louvor, e nos últimos versos convida todos a elevar tal louvor e a servir o Senhor. Dentro da moldura depois podem-se como que identificar três blocos:

  • o primeiro, mais longo, consiste no louvor a Deus pelas criaturas, que são apresentadas singularmente, uma depois da outra, mas com uma alternância entre masculino e feminino que pode fazer pensar em pares (como na narração bíblica da criação no Génesis);
  • o segundo é aquele constituído pelo louvor a Deus «por aqueles que perdoam pelo teu amor, e suportam enfermidades e tribulações», onde a atenção se afasta do mundo da natureza para se voltar para o mundo humano, no qual habitam contrastes – e por isso o perdão – mas também a doença e o sofrimento;
  • o terceiro bloco por fim refere-se à “dificuldade última”, ou seja, a morte, pela qual igualmente se louva a Deus, chegando a chamá-la “irmã” (este paradoxo explica-se pelo facto, para quem viveu na vontade de Deus, «a morte segunda não lhe fará mal»).

A crítica histórica leva-nos a dizer que a segunda e a terceira estrofes seriam acrescentos sucessivos à primeiríssima elaboração da oração, acontecidos em circunstâncias particulares: o tema do perdão teria sido acrescentado por ocasião de uma controvérsia entre o Prefeito de Assis e o Bispo de Assis, pacificada pelo próprio Francisco com o canto do Cântico; o tema da morte torna-se ao invés central para Francisco precisamente nos últimos meses da sua vida, até se tornar parte do texto.

Em geral podemos dizer que o olhar com que Francisco contempla as criaturas, mas também os acontecimentos humanos e a sua própria existência, é um olhar crente, que vê tudo como sinal do Deus criador (tal convicção é expressa claramente para o sol «o qual é jucundo, e alumias nós por ele; e ele é belo e radiante com grande esplendor: de ti, Altíssimo, traz significação»).

Não se trata então só da também muito verdadeira vibração da alma de um poeta diante da beleza que o rodeia (e que, lembremos, não pode mais ver fisicamente com os seus próprios olhos), mas de um olhar que vai em profundidade, mediante a fé, fazendo memória da obra de Deus e reconhecendo-o precisamente a partir das suas criaturas.

É a partir da Páscoa que agora os olhos de Francisco veem no cosmos e na história o início dos «novos céus e nova terra», daquela nova criação que a ressurreição de Jesus inaugurou. O louvor de Francisco é portanto um pouco mas largo que a dimensão “ecológica” na qual tendemos a encerrá-lo: todo o humano, feito também de sofrimento, doença, perdão e morte adquire sentido, na perspetiva de uma visão integral (papa Francisco chama-a “ecologia integral” de facto).

O Cântico assim testemunha-nos que a oração não é uma alienação da nossa realidade humana e cósmica, mas uma diversa maneira de a interpretar, de lhe dar um sentido e de a viver. Podemos também nós, com Francisco, perceber que todo o bem na criação e na história provém de Deus, sumo bem, e dar livre e poética voz à exigência de restituir a Deus todo o bem através do louvor e da ação de graças.

fra Andrea Bosisio –

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