A observância do Sábado

Em mais de uma ocasião, Jesus e os seus discípulos foram confrontados com a questão da observância do sábado. Mais precisamente, com o que era permitido, ou não, fazer ao sábado. Diz o livro dos Génesis que Deus, quando criou o sábado, descansou de todas as suas obras (Gn 2,2). Mais tarde, no tempo de Moisés, foi prescrito o repouso absoluto ao sábado (Lv 23,3). E mais tarde ainda, parece que os rabinos, do tempo de Jesus, já tinham tudo definido, sobre o que se podia fazer, ou não, no dia de sábado (Mc 2,24). Donde as acusações contra Jesus, em algumas ocasiões, por, aparentemente, não cumprir ou até desafiar o descanso prescrito para o sábado. Mas será que Jesus não cumpria mesmo o “mandamento” de Deus, do sétimo dia da semana? E qual era, para Jesus, o maior imperativo do dia de sábado? A resposta a esta pergunta importa também a todos os cristãos, uma vez que Jesus afirmou que não vinha revogar a Lei, mas vinha para a levar à perfeição (Mt 5,17). E, sendo assim, de que maneira Jesus queria que se santificasse o sábado? É verdade que os cristãos já têm o Domingo como o dia santo. No entanto, a santificação dos dias da semana começou já na Criação, logo no primeiro dia da semana. Sendo santo o primeiro dia da semana, como todos os outros, porque tudo o que Deus faz é santo. Donde o último, o sábado, com maior razão, não deveria ser o da plenitude da santidade? Então, de que maneira Jesus veria a observância do sábado? E, por conseguinte, o que é que os cristãos deveriam, realmente, “observar” ao sábado?

Um imperativo central

Em certa ocasião, um escriba – talvez perturbado pelos inúmeros preceitos que todos se viam na obrigação de cumprir –, perguntou a Jesus qual era o primeiro de todos os mandamentos. A resposta de Jesus, simplesmente, foi esta: «O primeiro é: Escuta, Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor; amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. O segundo é este: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior que estes» (Mc 12,28-31). Jesus cita, em primeiro lugar, o “Chemá Israel”, o texto Dt 6,4-7, como sendo o primeiro mandamento, e que constituía a oração privilegiada do devocionário judaico, com que se iniciava a liturgia da Sinagoga e todo o israelita cumpridor da Lei recitava três vezes ao dia, voltado para Jerusalém. Além deste texto, Jesus indica Lv 19,18 como sendo o segundo mandamento. Desta maneira, Jesus põe ao centro a atenção ao Senhor Deus de Israel, e a atenção ao próximo, unindo os dois mandamentos. Mas, antes de mais, com o primeiro texto, ao dizer “Escuta, Israel”, Jesus parece querer lembrar que a primeira condição para amar – seja a Deus, seja ao próximo – é a escuta. Foi também desta forma que Moisés, começou por apresentar o Decálogo, os Dez Mandamentos, ao dizer: Escuta, Israel (Dt 5, 1). Assim, escutar, parece ser o imperativo central, que está antes de tudo o mais a fazer. E porquê? Na realidade, escutar é algo que toda a gente, de qualquer condição social, pode sempre fazer. Sendo assim, para Jesus, também deveria ser esta a primeira ação a fazer, para com Deus e uns para com os outros. Mesmo para quem não consiga fazer mais nada – nem sempre se tem possibilidades adequadas para isso – escutar é sempre possível a qualquer pessoa. E, na verdade, sem a escuta não pode haver verdadeiro amor. Donde, para Jesus, a condição central – o imperativo – do maior mandamento de Deus, parece estar na escuta. De facto, em Jesus, a escuta era um ato continuo, de todos os dias da semana. Os Evangelhos permitem-nos ver que Jesus fazia de cada semana um exercício constante de escuta – de Deus Pai e do próximo – entre todas as coisas de que se ocupava. A começar pelo seu hábito de retirar-se, de manhã cedo, para rezar, procurando “escutar” a vontade de Deus (Mc 1,35). E depois, durante o dia, escutava todos os que o procuravam, sendo, este o seu primeiro ato de misericórdia, o primeiro gesto de acolhimento em vista a devolver a dignidade às pessoas, como filhos de Deus. Ao qual se sucedia, se era preciso, a restituição da saúde física e espiritual, com a cura e a libertação. Assim, a escuta, da Palavra de Deus e da “palavra” do próximo, eram o estilo da maneira de atuar e viver de Jesus. Um estilo que teve a sua origem no “silêncio” de Nazaré, a terra onde cresceu. E se a escuta, para Jesus, era um “imperativo”, não teria de vir a ser também um imperativo para os seus discípulos? Mas, para isso, não era preciso fazê-los entrar num “silêncio”, que lhes imprimisse o desejo de permanecer, para sempre, na escuta de Deus e do próximo?

O grande silêncio

O embate na Paixão e Morte de Jesus fez ir por “água abaixo” todas as espectativas e esperanças dos seus discípulos. Com o seu voluntário aniquilamento, Jesus fez entrar os discípulos no grande silêncio do Sábado Santo. Num sábado cujo o tempo lhes pareceu eterno, tal era a dor e as trevas que sentiam. E como podiam agora entender o que tinha acontecido ao seu Senhor? Nada parecia corresponder às promessas de Deus. E que palavra escutar, do alto ou do próximo, que lhes pudesse restituir a esperança? Jesus, de certa maneira, fez os seus discípulos voltarem àquele estado de caos e trevas, que já estava, nas origens da Criação, naquele primeiríssimo “tempo sabático” da criação, naquele “antes” do primeiro dia da semana. Ao estado caótico e disforme da terra, à beira do abismo, em que Deus parecia estar em total silêncio. E agora aí estavam também eles, diante do abismo e do total silêncio de Deus. Num estado que é também o estado que os cristãos, todos os anos na Semana Santa, no Sábado Santo, no sábado do grande silêncio, liturgicamente, são levados a experimentar. A estar junto do sepulcro – simbolizado no altar da igreja – em silêncio orante, meditando a Paixão e Morte de Jesus. Há espera de uma palavra que lhes restitua a vida. Daquela palavra que aconteceu no Domingo da Ressurreição e que se tornou referência para todos os Domingos do ano. Mas, da mesma maneira, o “silêncio” que aconteceu no Sábado Santo, não deverá ser referência para todos os sábados do ano? De facto, se em cada Domingo experimentamos a Palavra que nos retira do abismo do caos e das trevas da nossa vida, em cada sábado não deveríamos experimentar o silêncio, de quem espera nessa mesma Palavra? É por isso que o sábado é o dia, por excelência, da “observância” da escuta. Ou seja, da reativação da escuta. Do discípulo, que depois de ter estado atarefado com “mil” empenhos, tempestades e lutas durante a semana, e tendo, com isso, talvez perdido a melhor parte (Lc 11,41-42), precisa também ele de silêncio, para poder voltar a recuperar a escuta, na esperança de uma Palavra, que o restabeleça como pessoa e que o reconcilie como filho de Deus e com o seu próximo. Neste sentido, o grande silêncio de Jesus, do Sábado Santo é, na realidade, verdadeira misericórdia de Deus. Com o “descanso” dos seus trabalhos, Jesus ofereceu aos seus discípulos um silêncio redentor, dando-lhes total liberdade, para decidirem se permanecer no seu amor e no amor ao seu próximo. Obrigou-os, assim, a entrar naquela “atividade” que o silêncio mais clama para si: a escuta. Seja de Deus, seja do próximo. E não foi esta “atividade” que Jesus assumiu, realizou e ensinou durante toda a sua vida terrena?

Escuta, Israel!

Talvez a mais misericordiosa – e própria – obra de Jesus tenha sido a sua escuta constante: de Deus e do próximo. E isto como forma – porque é a mais primária e simples – de “aniquilação” diante de Deus e do próximo. Na realidade, foi assim que Jesus se colocou diante de Deus e do homem: como aquele que serve. E aquele que serve, não deve ter como atenção constante a escuta do seu Senhor e do seu próximo? E não é neste sentido que também apontam os textos bíblicos, que apresentam o sábado, como sendo o dia «para o Senhor» (cfr. Ex 16,23.25; 20,10; Lv 23,3; etc.)? Escutar a Deus e ao próximo, está, então, na essência da santificação do sábado. Da santificação da relação com o Deus, que fez uma aliança com Israel. E sendo o sábado o vértice do ritmo semanal, para Jesus este era também o dia do “vértice” da escuta. Da entrega do próprio tempo ao domínio de Deus, da sua vontade. E, da mesma maneira, chama os seus discípulos a entregarem o seu tempo a Deus e ao próximo, particularmente, em dia de sábado. Na realidade, o «faça-se» criativo de Deus, de cada dia da semana (Gn 1), apela a uma constante escuta do homem, num «faça-se» colaborativo – à maneira de Maria (Lc 1,38) –, à Palavra criativa de Deus. Então, a observância do sábado significa recolocar ao centro a sua Palavra, aquela mesma que teve início já no primeiro dia da semana e talvez já tenhamos esquecido, absorvidos que estivemos em tantas atividades. Aquele Palavra que dá sentido à Criação e, por isso, e sobretudo, dá sentido à criatura, àquela criatura – o homem – onde Deus põe todo o seu amor. E, precisamente por isso, Jesus põe o homem no centro do coração de Deus, e particularmente em dia de sábado, para que possa, por Ele, vir a ser verdadeiramente curado e libertado (Mc 3,4). O sábado aponta, assim, para esta obra de misericórdia, que é obra de Deus, mas que também quer ser obra do homem. Donde o imperativo da oração… Escuta, Israel!

frei Pedro Perdigão

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