O desafio de uma vida mais natural

Um olhar à visão de São Francisco

Este adjetivo natural é certamente polissemântico; pode significar “segundo a natureza das coisas” (por ex.: respeitar as coisas no seu sentido e significado) ou pode simplesmente indicar uma abordagem menos tecnocrática da vida, que saiba recuperar a sabedoria da vida “como era antigamente”, dm harmonia com a natureza entendida como ambiente. Certamente existem também outros significados próximos destes.

Natureza parece assim, para além de tudo, qualquer coisa de muito positivo, de autêntico, de não tocado pela ganância, pela maldade do homem, que muitas vezes destrói, rouba, escraviza, coisas e pessoas. Nem sempre porém foi assim na história da humanidade: também no tempo de São Francisco, a natureza era vista ao mesmo tempo como mãe e madrinha, fonte de vida e de morte, qualquer coisa pela qual agradecer a Deus mas também uma realidade a temer e até a combater.

Na nossa teologia cristã aliás, em referência ao ser humano, fala-se de “natureza lapsa”, isto é decaída, e faz referência a uma condição paradoxal e contudo comum a todos nós: somos feitos para a vida, para as relações, para a amizade  inexaurível e no entanto dentro, à volta e fora de nós experimentamos a morte, a inimizade, o interesse parcial, a crueldade. E isto diz respeito a tudo, também à natureza como mundo biofísico de que somos parte, mas em relação do qual estamos também em condições de perceber e afirmar (em vários modos, uns agressivos outros menos) a nossa peculiaridade. A natureza entendida como ambiente em âmbito cristão é mais habitualmente expressa com o termo criação e todas as coisas e as pessoas que existem são, portanto, criaturas.

É este o contexto cultural e religioso de frei Francisco, que escreveu o Cântico do irmão sol precisamente chamado também das criaturas. A fé cristã considera que toda a criação tenha sido danificada/tocada pela ganância do homem, não só porque vem sistematicamente depredada, depauperada, etc., mas também porque saiu das mãos de Deus um pouco como um automóvel extraordinário (creio que não posso fazer publicidade de marcas, mas talvez nós mais velhos recordemos Kit o supercarro de Magnum P. I.).

A criação saiu das mãos de Deus como uma joia de “tecnologia”, como um supercarro e oferece um monte de potencialidades: é versátil, segura, bela, veloz… e, contudo, a humanidade no seu conjunto – pela sua ganância e por medo de ter de a partilhar com outros – encerrou-a numa sala e usa-a como aquecedor para aquecer o apartamento. É ilógico, é estúpido, é danoso, e, no entanto, mutatis mutandis é aquilo que nós todos estamos a fazer da criação de Deus: estamos a “usá-la tão mal”, que nos faz mal, nos intoxica, e, no entanto, em si mesma se “usada” bem não poderia fazer-nos se não bem. E isto diz respeito a todos nó, não diz respeito só aos criminais, mas todos nós, porque se o supercarro está no refeitório intoxica a todos, até mesmo aqueles que não conseguiram… Em termos teologicamente mais corretos, quanto dito corresponde àquilo que nos dizia no século passado o grande teólogo Alexander Schmemann: tudo foi criado bom, mas tudo caiu. E, concluía, contudo tudo é redimido! Estas três passagens creio que sejam um critério útil para abordar a visão franciscana da natureza, assim como expressa no Cântico do irmão sol, e provavelmente também para colher novas abordagens daquela ecologia integral de que o Papa Francisco se fez promotor na Laudato si’ e que, está procurando atualizar com os novos desafios do nosso tempo, por certos aspetos já diversos dos de 2015, ano da publicação da encíclica.

Quando dizemos que tudo é criado bom, entende-se obviamente que tudo saiu do coração e das mãos de Deus como um dom. Em Assis, há uma belíssima imagem da criação realizada por Turriti, em que Deus se encontra na sua amendoeira, e, contudo, para fazer existir aquilo que não é ele, se põe um limite e mete a mão fora deste limite.

Tudo, portanto, é um dom: e tudo quer dizer tudo. A borboleta, os amigos, os filhos, o tempo, a comida, a terra, mas também o pitão, a víbora, aquele que percebo como meu inimigo, os meus/nossos limites e fragilidades. Tudo é um dom, uma caricia, tudo.

E, no entanto, nós não estamos em si de acordo: porque vemos algumas coisas como boas e outras como negativas. Os antigos, para justificar a dualidade da realidade, tinham imaginado dois deuses: o Deus do bem e o do mal, que arruína a criação.

Também Santo Agostinho se tinha deixado apanhar por esta doutrina na sua juventude. O cristianismo ao invés diz: tudo caiu. Também o amor (que pode ser abusado, que se pode tornar privilégio para os meus… e os outros… pior para eles), também a vida que se pode tornar um peso para si ou para os outros; até o molho de tomate bio caiu, diz Schmemann, porque embora eu o coma e viva sempre saudável, faça o bem, ajude o próximo, um dia morrerei (talvez mal, talvez comido por um tumor, ou investido por um pirata da estrada enquanto estou procurando viver um momento de distensão com os meus, etc).

E esta não é a criação como saiu das mãos de Deus: é antes o supercarro usado como aquecedor que intoxica todos os habitantes da casa.

Porém existe a última passagem: tudo é redimido, tudo em Jesus Cristo se pode tornar uma ocasião de bem, de amor verdadeiro, de encontro, tudo se pode tornar graças a ele experiência de vida que atravessa a morte e a vence precisamente no dom de si que é vida que não morre. É a lógica da semente: aquilo que morre na confiança e no amor germina e produz muito fruto. E quando dizemos tudo, é mesmo tudo: até Auschwitz se tornou lugar onde a luz e o calor do amor iluminaram e aqueceram a noite gélida da crueldade (refiro-me ao franciscano Massimiliano Kolbe, mas existiram muitos outros crentes nos campos de extermínio).

Sempre na basílica de Assis existe um par de frescos que mostra bem tudo isto. Jesus é despojado das vestes antes da sua execução, como um gesto de pura crueldade; mas ele enche este gesto do seu amor, porque no Evangelho disse: “a mim a vida ninguém a tira, sou eu que a dou”. É assim um gesto de crueldade da parte dos homens que praticamente está cheio de amor: isto quer dizer que não mal algum, mal no mundo onde não se possa fazer a experiência de ser amados.

O crente – no nosso caso Francisco – não é aquele que imita Cristo, mas que está unido a ele, baseia-se na experiência e no dom de Cristo de que acabámos de falar. Na frente está, de facto, o fresco de Francisco que se despe diante do pai, pela ganância deste último.

E no entanto neste evento doloroso, em que o pai afirma preferir o dinheiro ao seu filho, Francisco faz experiencia de Deus como verdadeiro pai e daqui começa a sua vida como frei Francisco, todo voltado a fazer de modo que também os outros possam ser introduzidos nesta mesma experiencia, que isto é o mundo (tudo: animais, plantas, incluídos os adversários, doenças, declínio da velhice, morte) são um dom porque, mesmo quando perdem o seu lirismo e beleza ou manifestam não o ter de facto, e se tornam portadores de mal, sofrimento, etc. não nos podem impedir de nos fazer descobrir amados, chamados por isso a escolhas e atitudes que favoreçam esta mesma atitude em relação aos outros.

Porque o único modo de usar o supercarro segundo a lógica de quem o realizou é a partilha, a responsabilidade partilhada, o cuidado. Deste ponto de vista creio que o Cântico do irmão sol não se deva ver como uma simples contemplação da beleza da natureza (aliás Francisco terminou-o, como sabemos, já praticamente cego, depois de uma noite de insónias atormentado pelos ratos em São Damião). O cântico é o desvelamento desta lógica paradoxal, segundo a qual tudo é belo, mas é também tudo caído e pode ser abusado e ser percursor de morte; e, no entanto, tudo é redimido, e isto é voltou a ser um dom daquele que cuida de nós e nos pede a mesma coisa para com tudo e todos, não como se faz num museu (deixando as coisas como são) mas á maneira da partilha. É muito significativo que a Bíblia se abra com um jardim e se feche com uma cidade, que é o mundo transformado para ser casa de todos, casa das oportunidades justas para todos.  Infelizmente as nossas cidades não parecem lugares de promoção. E isto também porque no final sempre nos iludimos de poder viver sãos num mundo doente (como nos disse já o Papa Francisco em 2020).

Creio que esta visão a encontramos precisamente no “mantra” da Laudato si’: tudo está conectado. Tudo está conectado porque respeitar o ambiente e não respeitar o meu próximo ou não promover o bem comum, que inclui a pessoa marginalizada e invisível que jaz no caminho par ao meu lugar de trabalho e que nunca cumprimento, significa ainda utilizar o supercarro na sala como aquecedor. Só que talvez tenhamos posto um pouco de desodorizante, para não sentir muito o cheiro a gás de descarga.

No undo a mensagem da Laudato si’ é justamente bela porque manifesta uma grande confiança para com cada um de nós, com a humanidade, capaz de descobrir o próprio tempo como uma oportunidade única de bem (em face de todos os profetas da desgraça) mas não de maneira mágica (no final tudo correrá bem) quanto sim graças à partilha e à corresponsabilidade.

Quem leu a encíclica sabe que os temas ambientais estão indissoluvelmente ligados aos da justiça, da tutela das culturas tradicionais (sobretudo se minoritárias, porque mais a risco), da paz, da descoberta, mas também da construção do mundo como casa comum. E a casa não é o hotel, não é o prédio, porque aquilo que qualifica a casa são as relações recíprocas de pertença.

Para concluir permito-me recordar que quando Francisco escreveu o Cântico não o pensou como uma poesia para colocar na gaveta ou um poema para embelezar a parede: mas mandou-o musicar e mandou os frades cantá-lo para que aqueles que viviam no ódio experimentassem a reconciliação, para que aqueles que viviam no egoísmo partilhassem com os pobres, para que quem vivia no pecado mudasse de vida.

Nest sentido também a Laudato si’ do Papa Francisco é uma mensagem dirigida à humanidade toda, a todos nós, e provoca cada um, no pequeno como no grande, as pessoas que têm poder e responsabilidades importantes e as pessoas comuns, para que nos demos conta que podemos dar passos para um mundo que se assemelhe à nova criação de Deus se soubermos construir caminhos concretos de fraternidade para todos e para tudo.

No fundo precisamente a fraternidade integral (que envolve tudo e todos) é a verdadeira herança de São Francisco e é a única estrada para um futuro de bem para a humanidade como indicado no magistério recente do Papa Francisco, em particular a encíclica “Fratelli tutti” assinada em Assis em 2020.

Fra Giulio Cesareo

Publicado em 23-08-2023 in, sanfrancescopatronoditalia.it

(tradução de, fr. zé augusto)

CONTACTOS EM PORTUGAL

Para mais informações podes contactar:


Frei. José Carlos Matias – Viseu

Tel: 232 431 985 |  E-mail: freizecarlos@gmail.com

Frei André Scalvini – Lisboa                                             

Tel: 21 837 69 69 | E-mail: andreasfrater4@gmail.com                                                  

Frei Marius Marcel – Coimbra 

Tel: 239 71 39 38 | E-mail: mariusinho93@gmail.com

Partilhe este artigo:

Outras Notícias