Festa da mulher: “quella segugia della Giselda”, de don Marco Pozza

de fra Nico Melato

Hoje partilhamos convosco um post de don Marco Pozza, capelão da prisão “Due palazzi” de Padova: palavras preciosas, que partilham a experiência de uma freira, do seu ser mulher, do seu ser mãe, do seu ser “amor”. 

Obrigado por estas palavras, que sejam o melhor augúrio que possamos fazer a todas e a todos.

Aquela segugia da Giselda de don Marco Pozza

Giselda é uma mulher de quase oitenta anos.

Digo “mulher”, mesmo sabendo que é também uma freira: uma freira felicíssima, aliás. A impressionar-te, porém, não é a sua espiritualidade: dá-la um pouco por descontada sendo freira (mesmo se nem todas as freiras e padres têm espiritualidade!)

A enfeitiçar-te é a sua profundíssima humanidade.

Quando a vejo enquanto atravessa as naves de ferro e de cimento da nossa pátria galera, parece-me entrever – por baixo daquela sua túnica cinzenta-azul – tudo aquilo que, desde sempre, sublinhei lendo as páginas dos Evangelhos.

Não ostenta sabe-se lá que competências, não tem doutoramentos: todas coisas que tendem a tornar maiúsculos os minúsculos como eu. Ela, de si, diria que é um farrapo. Ou, ao máximo, um daqueles trapos que se usam quando a água entra abundante na cave, à espera que chegue o canalizador para a reparação: absorvem, contêm, incham, sem nunca se lamentarem.

Depois, uma vez usados, penduram-se no estendal para que se enxuguem (talvez nem sequer esta delicadeza lhes é reservada!) e voltas a coloca-los ao peito. Eles, os trapos, não oporão nenhuma resistência: ficarão contentes de ter sido úteis quando era preciso. É a “espiritualidade do trapo” daquele santo Homem de Deus que foi don Luigi Orione. O grande amigo de Ignazio Silone.

À irmã Giselda as mimosas, se chegarem, serão com atraso: o correio do coração já lhas entregou, com alguns dias de antecipação, o “pensamento” mais belo por ocasião da festa da mulher. Porque ela é uma mulher antes de ser uma freira. O correio, entregou-lho, em direto e pessoalmente, Giuseppe, um dos “nossos” jovens reclusos.

Estava contando a sua história – ainda mais: estava apresentando o seu testemunho, o testemunho de um novo “Caim” – a uma centena de rapazes e raparigas sentados diante dele, no teatro da galera. Ele matou: as suas mãos de lixa, trespassaram, como um arado rasga a terra, o corpo da mulher amada. Deixando os seus pequenos órfãos de ambos os pais, mesmo tendo o pai ainda vivo. O seu gesto, gesto que nunca se perdoou, tornou-se uma prisão, a sua prisão: quem tem ainda uma consciência, depois de ter matado acabará quase sempre por sobreviver mais que viver.

Ao contar a sua história, a um certo ponto acende os refletores sobre um particular de dimensões ciclópicas: «No momento das trevas mais horríveis, eu encontrei a Irmã Giselda – diz -. Para ela eu não era “O Mostro”: pegou-me na mão e nunca mais me largou». Ei-lo, Arquimedes, o ponto de apoio que procuravas para levantar a terra: «Um dia chamei por telefone minha mãe e disse-lhe: “Não te zangues, mãe, se te digo uma coisa: irmã Giselda deu-me à luz uma segunda vez».

Ela, Giselda, fica impassível, enquanto a história entra como um bisturi no silencio da plateia. No rosto ele veste a impassibilidade de quem, se quisesse tomar a palavra, diria: “Não fiz nada de extraordinário, Giuseppe. Só te quis bem desde logo”. Tornar de uma simplicidade louca o heroico é peculiar dos santos.

Na galera, entre nós, o padre pode ser gozado, criticado, contrariado, difamado, maltratado. Se alguém, porém, se atreve a dizer qualquer coisa sobre a irmã Giselda, deverá ter em conta que levará uma chapada na cara: “Ninguém toque a Giselda” é a ameaça de Rádio Carcere.

Não pode haver ciúme por mulheres de tamanha estatura: deverás só sentar-te à beira da estrada, contemplá-las à obra, tomar nota de algum pensamento para seres menos ignorante em amor. Deverás tornar-te aluno do seu ouvido materno: «Sabes porque Giselda é uma grande? – confidencia-me um dia um homem, forte como um armário de cerejeira, que matou uma mulher – Porque aqui dentro muitos de perguntarão “Como estás?”, mas poucos pararão depois para ouvir a tua resposta. Ela fica a ouvir».

Perguntar a Caim: “Como estás?” é admitir ter entre as mãos a bomba atómica que esmaga e desmorona o mal: a ternura. Com Caim, com os irmãos de Caim, para os recuperar valerá mais uma caricia que um descontado: “Levai para a rua a vossa raiva!” A ternura, nestas partes, é uma forma inesperado de justiça. É também um desporto extremo, a ternura: e como em todos os desportos que têm que ver com o extremo, se deverão calcular os atrevidos fora de pista.

A Giselda é o cão de caça de Deus na floresta escura da nossa prisão. É uma mulher maiúscula: é tão evidente de quanto pequena ela se esforça por aparecer. Afundando-se no mal dos “seus” rapazes: para depois encenar ao seu mal uma manifestação de protesto. Contrário e letal: o protesto do amor.

don Marco Pozza (de, Il Sussidiario, 8.III.2024 – photo@TranquilloCortiana)

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