Palavra de Deus e discernimento

Porque é que a Palavra de Deus é tão central na vida dos cristãos, e em particular no discernimento vocacional? Descubramo-lo em vista da festa da Língua di Santo António!

Um frade franciscano lê a Bíblia junto de uma janela, no Santuário do Alverne (AR).
© p. Paolo Floretta / Arquivo MSA

Porque é que a Palavra de Deus é central para nós? Porque é que nós cristãos somos (ou deveríamos ser!) assim tão ligados à Palavra de Deus, à Sagrada Escritura? Porque é que a Palavra é fundamental para a nossa vida de fé? Porque é que sobretudo no discernimento vocacional é irrenunciável confrontar-se com ela e coloca-la no centro da nossa oração?

Tentemos dar alguma indicação sobre isto.

Antes de mais devemos esclarecer-nos sobre uma coisa: o que é a Palavra de Deus! Atenção, porque não é dado por descontado, não é assim como parece! Nós pensamos que Sagrada Escritura, Bíblia, Palavra de deus, sejam todos sinónimos … mas não é mesmo assim! 

Quando é que na igreja usamos a expressão «Palavra do Senhor»? fazemo-lo durante a celebração da missa, no final das leituras. E a que coisa nos referimos? Certamente nos referimos ao texto da Escritura imediatamente precedente, mas não somente a esse. Ou melhor: não a esse tomado em si mesmo. Referimo-nos, de facto, àquela Palavra enquanto foi proclamada, rezada, escutada, assumida, vivida, celebrada por uma comunidade de pessoas em carne e osso. Só quando a Escritura encontra o coração do povo de Deus, só quando o povo de Deus, nós os crentes, nos pomos em escuta da Escritura, então esta torna-se verdadeiramente «Palavra de Deus». 

De facto, a «Palavra de Deus» não é um texto escrito, mas um facto, um evento, um acontecimento! Essa é, de facto, em primeiro lugar relação: a relação entre Deus e o seu povo. A relação entre pessoas vivas (nós) e o Vivente (Deus).

E na verdade esta relação entre a humanidade e Deus assume precisamente o nome de Jesus Cristo, que nem de propósito é «o verbo que se faz carne», a Palavra que se faz carne, a Palavra que assume um corpo. A Palavra de deus é antes de mais Jesus Cristo, ele é a Palavra que Deus diz sobre o mundo, ele é a Palavra que vem, sempre! Aliás, ainda mais: este evento, este facto, pode acontecer somente porque em nós está presente o Espírito Santo. Que é o Espírito do Ressuscitado, de Cristo Ressuscitado. Que é o Espírito do Pai, o Espírito Criador, que faz existir e renova continuamente todas as coisas. Que é também o Espírito que sopra continuamente entre o Pai e o Filho, isto é a sua mesma união de amor, em que nós somos imergidos, enquanto feitos à imagem e semelhança de Deus, imersos nesta dinâmica com o Batismo.

Então é aquele mesmo Espírito que inspirou a Escritura, que torna possível o acontecer do nosso encontro com Deus nela. Que torna possível o facto que Cristo em nós escuta o Pai que fala na sua Palavra, e responde de maneira adequada, nos permite dizer o nosso «sim» ao convite de amor do Pai. 

É só através do Espírito Santo que nós podemos verdadeiramente escutar a Escritura, compreendê-la, fazê-la penetrar no nosso coração, deixar que nos converta profundamente, que mude a nossa vida, e que, portanto, tudo isto faça acontecer o milagre da «Palavra de Deus», aquela Palavra que nunca volta a Deus sem ter cumprido aquilo para que foi mandada, aquela Palavra que renova sempre todas as coisas.

Se quanto dito não fosse suficiente para intuir porquê esta Palavra é de verdade indispensável à nossa vida de cristãos (aliás, é indispensável a toda a vida humana), tentemos explicitar um outro aspeto. Partimos de uma bela definição de «cristão» que encontrei, que é esta: «O cristão é quem tem a capacidade de ver o sentido interior as coisas, a sua realidade mais verdadeira, e, portanto, de compreender e escolher aquilo que é bem». Se «ser cristãos» quer dizer isto, então certamente para «ver bem dentro as coisas» precisamos de abrir os olhos, de abrir os ouvidos, de aprender a ver com os olhos certos. E quais são os olhos mais certos, os ouvidos mais certos para ver e ouvir a realidade das coisas? Obviamente os de Deus, isto é, aqueles de quem criou todas as coisas, de quem habita dentro todas as coisas, de quem sabe o porquê de todas as coisas! Então o segredo de ser cristãos está todo aqui: aprender a ver com os olhos de Deus, a ouvir com os sentir com os sentimentos de Deus!

E como se faz? Bem, é preciso frequentá-lo, estar com ele, conhecê-lo. E para o conhecer, para estar com Deus, sabemo-lo, precisamos de algumas mediações, porque Deus não está à nossa disposição diretamente (só no paraíso o veremos finalmente «face a face»). E estas «mediações» na vida do cristão são muitas: a oração pessoal, a oração da Igreja, a minha consciência, o padre espiritual, os sacramentos, as relações, a criação, os pobres … e a Palavra de Deus. entre todas estas mediações (todas indispensáveis à nossa fé) a Palavra de Deus (isto é, repetimo-lo, o nosso encontro com ele através da Escritura) é um meio poderoso porque, à diferença das outras mediações, é escrita, é codificada, é fixada.

Isto significa que Deus se exprime nela ao máximo daquilo eu é verdadeiramente: ali se encontra o rosto de Deus precisamente como o mesmo Deus falaria de si.

Nos outros lugares temos sempre o risco de modificar um pouco o rosto de Deus conforme o nosso agrado, de lhe fazer dizer aquilo que nos faz mais cómodo. Na palavra de deus, ao invés, não! 

Explico-me melhor: também à Escritura podemos fazer dizer tudo aquilo que queremos! Mas se nos pomos com honestidade diante dela, e pedimos o dom do Espírito Santo, e a escutamos «na Igreja» (isto é, como comunidade crente, e não como um individuo batedor livre), em suma, fazemos da Escritura a «Palavra de Deus» (como dissemos antes), então é menos improvável que consigamos pouco a pouco descobrir quem seja Deus de verdade.

E o Deus que descobrimos dentro da Escritura, quando essa se torna Palavra de deus para nós, não é idêntico àquilo que esperamos. Nunca o é! A tarefa da Palavra de Deus é precisamente esta: a de nos desmontar, de nos revirar as perspetivas, de mudar o olhar, radicalmente. Em termos «eclesiais» poderia dizer-se «converter-nos». De fato: «Não procura quem, de modo mais ou menos escondido, se esforça por afirmar a sua mentalidade, as suas ideias, a sua razão e finge de procurar pondo em dificuldade quem não pensa como ele.

Na realidade quem procura é aberto. E aquilo que procura é exatamente uma outra coisa diferente da que já possui […]. Quem procura, busca aquilo que ainda não tem enquanto quem defende a sua visão tenta fazer ver que a tua não vale. Finge de procurar, mas na realidade não procura mesmo nada, simplesmente não quer mudar» (Rupnik, Il cammino della vocazione cristiana, p. 64). 

Eis porquê então a Palavra de Deus é fundamental para a nossa vida: porque nos mantém em caminho, nos abre sempre novos horizontes, nos mostra que Deus está sempre um pouco mais além.

Liberta-nos dos nossos bloqueios,ensina-nos o caminho certo, surpreende-nos, fascina-nos, perturba-nos, desconcerta-nos, atrai-nos, porque é sempre nova, sempre mais viva de quanto possamos sê-lo nós com as nossas forças.

Tudo isto, escusado será dizer, é central, fundamental, irrenunciável no discernimento vocacional!

O discernimento vocacional não é mais que aprender a pôr-se em escuta de Deus, aprender a estar com ele, aprender dele como vê as coisas, como vê a nossa vida, aprender a responder aos seus apelos como Cristo responde em nós. Como pensamos poder fazer discernimento sem estar agarrados à Palavra de Deus? Impossível! Não servem muitas outras palavras neste sentido: ou se está com a Palavra de Deus, ou então não se vai a nenhuma parte, literalmente.

E, por fim, o que é que tem a ver tudo isso com santo António e a festa da Língua ou da Trasladação? 

No dia 15 fevereiro em Padova, nós frades franciscanos da Basílica de Santo António celebramos a festa da Língua de santo António, ou Festa da Trasladação. Trata-se de uma celebração que recorda algumas trasladações do corpo de António, acontecidas entre 1263 e 1350 na Basílica, e em particular duas destas. A primeira trasladação, a de 1263, a 32 anos da morte do nosso Santo (1231), por obra de são Boaventura (naquele momento geral da ordem franciscana, sucessor de são Francisco): por ocasião da inauguração da nova Basílica em sua honra, domingo 7 abril 1263 (Oitava da Páscoa) o corpo de António foi trasladado da sepultura original (na atual capela da Madonna Mora, sob o altar, onde tinha sido posto na terra no dia dos seus funerais, terça feira 17 junho 1231), ao centro da nova Basílica, exatamente sob a cúpula do Anjo. Foi precisamente nesta ocasião que Boaventura, abrindo a urna de madeira, descobriu a língua do Santo ainda vívida e incorrupta. E a última trasladação, a de 15 fevereiro (eis porque festejamos precisamente hoje) 1350, quando o corpo de António foi posto na arca erigida em sua honra, precisamente onde o encontramos ainda hoje, a mais de 670 ano de distância.

O que nos diz o milagre da Língua incorrupta? Diz-nos uma vez mais que Sant’ António é o Santo da Palavra: o Senhor preservou aquela Língua que o anunciou e testemunhou, com coragem e paixão. António tornou-se grande, e é-o ainda para milhões de peregrinos e devotos em todo o mundo porque soube estar à escuta daquela Palavra que lhe dava vida, e restitui-la aos outros, continuamente, incansavelmente. A descoberta da língua incorrupta representa, portanto, o selo de Deus sobre a sua obra, o reconhecimento da parte do Pai que António soube e sabe falar dele, de maneira autêntica e verdadeira, e, portanto, «imortal», incorruptível: «os céus e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão» (Mt 24,35). 

Através de Sant’ António, o Senhor, ainda hoje, nos recorda como a sua Palavra salva a nossa vida, e nos convida sempre a voltar ao coração do Evangelho. Então peçamos a Sant’ António que nos ajude sempre neste caminho de sequela, de discernimento, de escuta da sua Palavra, para que essa possa sempre abrir-nos estradas novas.

Boa escuta da Palavra e bom caminho a todos.

FRA NICO MELATO colaborador de, santantonio.org

franico@vocazionefrancescana.org

Data de publicação: 13 fevereiro 2024

Tradução, fr.zé augusto

Partilhe este artigo:

Outras Notícias